Os Suspeitos (Prisoners, 2013)

   [SPOILERS]

O mais novo trabalho do diretor canadense Denis Villeneuve é uma obra tão complexa e instigante quanto seus personagens, funcionando como um curioso estudo destes enquanto se prende a uma trama envolvente e eximiamente construída. Entrega-se em seus minutos finais, no entanto, a desnecessárias convenções de gênero que não somente traem a atmosfera cuidadosamente criada ao decorrer de duas horas como também afastam a obra de seu potencial temático.

A narrativa inicia em um plano que pode ser possivelmente a síntese da história. Enquadrando uma floresta coberta de neve, testemunhamos um alce caminhando despreocupadamente enquanto o voice-over de Keller Dover (Hugh Jackman) recita o Pai Nosso. Em um travelling lento, descobrimos que o animal está sob a mira de um rifle e, quando Dover termina seu mantra religioso, a arma dispara executando sumariamente sua presa.

O paralelo é facilmente estabelecido com o que vemos a seguir, já que passamos a acompanhar a família Dover vivendo em aparente harmonia em sua modesta residência enquanto estes se preparam para passar o Dia de Ação de Graças na casa de um casal de conhecidos e suas filhas. O que eles não parecem perceber é a presença ameaçadora de um motorhome que os observa à distância, e cuja posse, como iremos descobrir mais adiante, pertence a uma família fortemente influenciada e perturbada pela própria fé.

Villeneuve demostra inteligência ao ir além da introdução de personagens e informações e utiliza os minutos iniciais para mergulhar o espectador em um mundo frio e triste, ainda que seus personagens não estejam vivendo em uma realidade sombria. O roteiro Aaron Guzikowski apresenta o núcleo familiar dos Dover e seus amigos, os Birch (vividos por Viola Davis e Terrence Howard), de forma casual, adicionando detalhes que mais tarde serão importantes para a trama, mas em princípio servem somente para retratar o cotidiano de uma família que tem seus altos e baixos pessoais e financeiros, nada mais. Fica portanto a cargo do diretor e sua equipe criar um clima tenso logo nos primeiros minutos da projeção. Ao utilizar-se da fotografia do veterano Roger Deakins e da direção de arte de Patrice Vermette, o espectador é situado em uma realidade cujos tons frios imperam, na qual o público pressente que algo ruim está à espreita, mesmo ao acompanhar os protagonistas em tarefas prosaicas como arrumar a mesa da sala.

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Essa atmosfera sombria é palpável ao ponto de transformar um travelling contendo o tronco de uma árvore em primeiro plano em um presságio à tragédia que se segue: o sequestro das duas crianças menores.

Uma das grandes forças da obra reside justamente na maneira não tradicional que a investigação, comandada pelo detetive Loki (Jake Gyllenhaal), inicialmente toma forma. Como o veículo já havia sido indiscutivelmente apontado como o malfeitor, o roteiro não perde tempo adiando sua captura, portanto é logo apreendido e relevado o rosto de Alex Jones (Paul Dano), aquele que é muito provavelmente o sequestrador. A partir desse ponto é estabelecida a maior promessa do filme, a qual não é mantida por seu decepcionante final.

Obviamente há diversos outros caminhos (e as melhores obras os misturam de forma orgânica), porém há duas grandes vertentes que esse estilo de suspense policial pode seguir: o primeiro é o suspense que gira em torno do crime e suas intricásseis, as quais os protagonistas – e o público – devem resolver até chegar no perpetuador em questão. Filmes como Se7en, Janela Indiscreta, O Silêncio dos Inocentes ou Os Homens que Não Amavam as Mulheres são exemplos desse formato, que com certeza somente sobrevivem com a construção cuidadosa de seus personagens, porém é a trama que mais interessa. Nesses exemplares, há a necessidade absoluta de uma resolução satisfatória por parte do roteiro, já que sua existência se baseia no conflito criado pelo antagonista, seja ele um psicopata ou… bom, geralmente é um psicopata.

A segunda vertente, entretanto, é composta por obras de certa maneira mais ambiciosas, como Memórias de Um Assassino, Zodíaco ou A Promessa. Nesses, os crimes cometidos funcionam mais como ferramenta propulsora do que necessariamente mistérios que necessitam de uma resposta hermética. O foco nessas tramas não é o ato cometido pelos antagonistas, mas sim a resposta dos protagonistas a estes. São roteiros focados em analisar e acompanhar os efeitos de um crime sobre o psicológico de seus personagens, sejam eles detetives ou civis, servindo frequentemente como espelho para perguntarmos o que faríamos na mesma situação. Há um espaço maior aqui para nuances, para pessoas que transitam na zona cinzenta e, contra a própria vontade, em algum momento entregam-se ao seu âmbito mais negro, despertando demônios que dificilmente serão apagados tão cedo. É por esse motivo que muitas dessas obras se permitem a não concluir todas, quando alguma, perguntas, já que, no fim da projeção, elas não importam mais.

A primeira metade de Os Suspeitos cria a promessa de um excelente exemplar da segunda vertente ilustrada aqui. Irritado com os procedimentos da polícia, Kelly Dover decide fazer justiça com as próprias mãos e abduz Alex Jones após o mesmo ser solto por falta de evidências. Convencido da culpa deste, Dover leva às últimas consequências a máxima de que um pai faria qualquer coisa pelos filhos, torturando aquele que, conforme Loki, tem o Q.I. de uma criança de 10 anos. A partir desse ponto, o filme encontra sua verdadeira temática e seu dilema mais crucial. O crime em si, ou melhor, a resolução do crime, torna-se segundo plano. Após estabelecer que o protagonista quebrou a lei (e sua própria humanidade), o roteiro eleva-se a um novo patamar acima de um simplista “whodunnit”. Será que é certo continuarmos a torcer por aquele homem que cria uma verdadeira câmara de tortura? Isso não nos tornaria tão cúmplices quanto Nancy Birch, que se exime de qualquer culpa falando ao marido que não ajudarão, mas também não ficarão no caminho? É óbvio que não existe justificativa para tortura, mas se Alex sabia onde elas estavam e a vida de duas crianças inocentes dependesse da informação arrancada à força, será que então seria justificável? Os conflitos morais e éticos levantados por esses que são possivelmente os melhores momentos do filme são infinitos, criando um obstáculo intransponível para os protagonistas. Mesmo que as meninas sejam encontradas, o que ele fará com seu prisioneiro? Executar-o-irá? E se ele fosse completamente inocente?

E é justamente no auge de todos esses questionamentos impossíveis que Guzikowski trai sua ambição e arrasta a obra a um desfecho raso que simplesmente ignora tudo anteriormente levantado.

Há quase uma ruptura em tom a partir do momento em que Joy Birch (Kyla Drew Simmons) é encontrada e levada ao hospital. Se Villeneuve carregou com segurança a narrativa até então, nesse momento ele trai suas escolhas visuais ao incluir flashbacks artificiais e desnecessários que destoam de sua linguagem realista e direta. Um problema contornável, claro, se não fosse a entrega absoluta do roteiro aos lugares-comuns mais irritantes do gênero, com direito a um vilão caricato que conta todo seu plano enquanto mantém o protagonista sob a mira de sua arma. Todo o realismo é descartado em prol de uma cena que nunca encontra um momento honesto, uma vez que as motivações de Holly Jones (Melissa Leo) nunca soam verossímeis (uma guerra contra Deus? Qual o próximo plano, conquistar o mundo?), criando o antagonista em um filme que não precisava de um. Segue-se ainda momentos batidos que parecem jogados ao acaso na narrativa, como a injeção letal, o tiroteio, e a corrida de carro contra o tempo.

Não que no final seja perdoado ou esquecido o crime de Dover, mas no momento em que se cria um vilão como nesse caso, todos aqueles dilemas morais tornam-se irrelevantes para a narrativa. O que era um filme sobre pessoas comuns vivendo uma tragédia da qual ninguém está a salvo, transforma-se em um caso específico de um psicopata inverossímil, alguém que basta somente eliminar do planeta para deixar de ser uma ameaça. Perde-se a chance de discutir assuntos mais sérios que envolvem doenças mentais e questionamentos do quão culpado Alex Jones poderia ser por seus atos, caso ele tivesse sido o sequestrador. Problemas sociais abstrusos que obviamente não se resolvem com tiros.

Perde-se também as nuances em relação a seus personagens. O que deveria ser uma batalha interna pela absolvição da alma de Dover, acaba por ser uma questão de liberação física de seu cativeiro. O que importa no fim é se ele vai ficar vivo ou não, e não se ele vai algum dia poder levar uma vida normal novamente.

Entendo o perigo que é julgar um filme pela maneira como se gostaria que ele fosse ao invés do que ele é, mas, em minha defesa, toda a decepção experimentada em relação ao terceiro ato se deve exclusivamente a construção minuciosa e ambiciosa de suas duas primeiras partes, que em nada condiz com a superficialidade de seu final.

Os Suspeitos é, assim, uma das melhores decepções do ano.